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Jurisprudência

 

2.ª CÂMARA

ACÓRDÃO N.º 896/2024

 

Processo n.º 1128-D/2024
Recurso Ordinário de Inconstitucionalidade
Em nome do Povo, acordam, em Sessão da Segunda Câmara do Tribunal Constitucional:

I. RELATÓRIO

Jomilton Miguel Gaspar, Denise de Campos Dias dos Santos, Helena Henriqueta Miguel Gaspar e Exelauto – Prestação de Serviços, Lda., com os demais sinais de identificação nos autos, vieram, ao Tribunal Constitucional, ao abrigo das disposições conjugadas da alínea e) do n.º 2 do artigo 181.º da Constituição da República de Angola (CRA), com a alínea b) do n.º 1 do artigo 36.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho, Lei do Processo Constitucional (LPC), com as alterações introduzidas pela Lei n.º 25/10, de 3 de Dezembro, interpor recurso ordinário de inconstitucionalidade do Acórdão da 1.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo, proferido no âmbito do Processo n.º 6217/23, que manteve a decisão do Tribunal da Relação de Luanda que declarou a perda de bens dos Recorrentes a favor do Estado, nos termos do regime previsto no Código Penal Angolano (CPA), sobre a perda dos objectos do crime pertencentes a terceiros.

Em autos de processo comum que correu os seus termos na 3.ª Secção da Sala dos Crimes Comuns do Tribunal da Comarca de Luanda, foi promovida e declarada a perda alargada de bens dos aqui Recorrentes Jomilton Miguel Gaspar, Denise de Campos Dias dos Santos e Helena Henriqueta Miguel Gaspar, ao abrigo do disposto na alínea b) do artigo 6.º da Lei n.º 15/18, de 26 de Dezembro, Lei sobre o Repatriamento Coercivo e Perda Alargada de Bens (LRCPAB).

Da factualidade dada como assente nos autos, ficou demonstrado que os Recorrentes Jomilton Miguel Gaspar e Denise de Campos Dias dos Santos auxiliavam o co-arguido Pedro Lussati a transferir avultadas somas de dinheiro para o exterior do País, recebendo, pelo serviço prestado, generosas quantias monetárias. Com tal recompensa, adquiriram bens móveis e imóveis em Angola e Portugal, devidamente identificados nos autos, tendo doado um dos imóveis à Recorrente Helena Henriqueta Miguel Gaspar, mãe do Recorrente Jomilton Gaspar, adquiriram também duas viaturas automóveis à empresa Exelauto – Prestação de Serviços, Lda., que alega, no essencial, tê-las entregado ao casal por intermédio de um contrato de aluguer (fls. 15276 e ss.).

Dessa decisão, os Recorrentes interpuseram recurso no Tribunal da Relação de Luanda, tendo este Tribunal alterado a decisão prolactada em primeira instância e declarado a perda de bens a favor do Estado com base no disposto no n.º 2 do artigo 121.º do CPA, por ter considerado que os bens dos Recorrentes não se enquadram no conceito de bens de terceiro para efeitos da perda alargada, uma vez que os factos narrados na promoção de perda de bens do Ministério Público constituem indícios bastante da prática pelos Recorrentes, Jomilton Miguel Gaspar e Denise de Campos Dias dos Santos, do crime de branqueamento de capitais (fls. 17130 e ss.).

Uma vez mais, inconformados, os Recorrentes interpuseram recurso no Tribunal Supremo que confirmou a decisão recorrida (fls. 18622 e ss.).

Aqui chegados e notificados para apresentarem alegações, os Recorrentes apresentaram as suas motivações de recurso em duas peças separadas, tendo Jomilton Miguel Gaspar, Denise de Campos Dias dos Santos e Helena Henriqueta Miguel Gaspar apresentado os seguintes fundamentos (fls. 135 a 153), em síntese:

1. O Tribunal a quo aplicou normas cuja inconstitucionalidade material foi suscitada, cabendo a este Tribunal, enquanto guardião da Constituição, apreciar e decidir sobre cada uma das questões jurídico-constitucionais.

2. Os Recorrentes, partes civis/terceiros nos autos dos quais se recorre, entendem que a aplicação das normas previstas no n.º 2 do artigo 121.º do CPA e na alínea b) do artigo 6.º da LRCPAB, com o sentido de que integravam o património do arguido Pedro Lussati bens de terceiros sem que estivessem preenchidos os pressupostos para a qualificação de terceiro de má-fé e sem que se demonstrasse a respectiva conexão objectiva e subjectiva do comportamento dos terceiros com o comportamento ilícito daquele, são inconstitucionais por violação do princípio da intransmissibilidade da responsabilidade penal e do direito à propriedade privada, consagrados, respectivamente, nos artigos 65.º e 14.º, ambos da CRA.

3. O Tribunal decretou a perda dos bens imóveis e saldos bancários de Jomilton Gaspar e Denise dos Santos, sem prova certa e efectiva de que os bens dos Recorrentes apreendidos nos autos foram adquiridos com fundos da Casa de Segurança do Presidente da República, por intermédio do arguido Pedro Lussati.

4. Não tendo sido provado que os bens apreendidos constituem património do arguido Pedro Lussati, tal decisão legitima a transmissibilidade da culpa e da pena do referido arguido para os Recorrentes. Não se pode apreender, nem decretar perdidos a favor do Estado bens de uma pessoa diversa do arguido.

5. A perda de bens a favor do Estado é uma sanção penal ou, pelo menos, acarreta efeitos sancionatórios penais. Ao decretar a perda dos bens do património dos Recorrentes, sem que estivessem preenchidos os pressupostos de terceiro de má-fé nem a conexão objectiva da conduta do arguido com os Recorrentes (terceiros de boa-fé), o Tribunal privou-os da sua propriedade, ou melhor, do seu direito de propriedade.

6. Se os Recorrentes não foram arguidos no processo, não foram condenados, nem sequer são terceiros de má-fé, não podem ser privados dos seus bens. O Tribunal operou uma interpretação extensiva destas normas in malam partem, proibida por lei.

7. A aplicação da norma prevista no artigo 4.º da LRCPAB, interpretada no sentido de que podia o Tribunal decretar a perda de bens de terceiros por meio de uma interpretação extensiva, quando não procedeu no Acórdão ao exame crítico da prova que demonstrasse, efectivamente, a pertença desses bens ao arguido condenado, está ferida de inconstitucionalidade material.

8. A aplicação da figura de terceiro da alínea b) do artigo 6.º da LRCPAB e do n.º 2 do artigo 121.º do CPA só é possível se estiver preenchido o teor do artigo 4.º da LRCPAB. Não estando preenchido, não podia o Tribunal aplicá-lo ainda que por meio de uma integração analógica ou de uma interpretação extensiva in malam partem.

9. A perda de bens de terceiro só pode ocorrer quando os seus titulares tiverem concorrido, de forma censurável para a sua utilização ou produção, ou do facto tiverem retirado vantagens; ou, ainda, quando os objectos, forem, por qualquer título, adquiridos após a prática do facto, conhecendo os adquirentes a sua proveniência.

10. Dos autos não resulta prova de que os Recorrentes tenham concorrido de forma censurável para a sua produção ou utilização, nem que tenham tido qualquer vantagem, nem que os tenham adquirido depois da prática do facto.

11. Se não existe a conexão objectiva e subjectiva entre os Recorrentes, o seu património e as actividades presumivelmente ilícitas de Pedro Lussati, não podia ser aplicado o n.º 2 do artigo 121.º do CPA.

12. O Tribunal da Relação de Luanda decidiu afastar o conceito de terceiro da alínea b) do artigo 6.º da LRCPAB e declarou a perda clássica dos bens dos Recorrentes ao abrigo do n.º 2 do artigo 121.º do CPA, sendo que este Código entrou em vigor a 11 de Fevereiro de 2021.

13. O título de propriedade dos Recorrentes, referentes aos bens imóveis e aos saldos bancários, é anterior a 11 de Fevereiro de 2021, e, por isso, devia ter sido aplicada a norma do artigo 75.º do Código Penal de 1886.

14. Ao ter procedido conforme procedeu, o Tribunal da Relação de Luanda aplicou retroactivamente a lei penal, decisão esta mantida pelo Tribunal Supremo, e que viola o princípio da proibição de aplicação retroactiva de normas penais.

Por seu turno, a Recorrente Exelauto – Prestação de Serviços, Lda., apresentou as razões que se seguem (fls. 181 a 197), em síntese:
1. A Recorrente, terceira de boa-fé, pretende que o Tribunal Constitucional aprecie a inconstitucionalidade material das normas previstas dos artigos 121.º, n.º 2, do CPA e da alínea b) do artigo 6.º da LRCPAB, no sentido de que é lícito ao Tribunal decretar a pena de perda de duas viaturas a favor do Estado, por entender que as mesmas integram o património do arguido Pedro Lussati, sem que se encontrem preenchidos os pressupostos de terceiro de má-fé e da conexão objectiva e subjectiva ao comportamento ilícito daquele.

2. A Recorrente defende que tal aplicação normativa por parte do Tribunal e com tal sentido é susceptível de configurar uma inconstitucionalidade material, por violação do princípio da intransmissibilidade da responsabilidade penal, consagrado no artigo 65.º, n.º 1 da CRA, e do direito de propriedade, consagrado no artigo 14.º da CRA.

3. O Tribunal declarou a perda de bens, sem ter sido feita prova certa e efectiva de que as duas viaturas apreendidas foram adquiridas com fundos provenientes de Pedro Lussati.

4. Dos autos, constam documentos emitidos pelas autoridades oficiais de Angola que demonstram que a Recorrente tem a titularidade da propriedade das duas viaturas.

5. As viaturas não integram o património de Pedro Lussati e a Recorrente não foi condenada pela prática de qualquer crime lesivo ao Estado, pelo que o artigo 4.º da LRCPAB não se encontra preenchido.

6. Não se pode apreender bens de pessoa (colectiva) diversa daquela que é arguida e condenada no processo-crime ou nos casos em que o arguido condenado tenha transferido a propriedade de bens ou feito venda por valor irrisório a um terceiro. No caso em apreço, não subsiste desde logo pelo facto da Recorrente não ter qualquer relação de conexão com o arguido Pedro Lussati, nem ter havido entrega de quantias monetárias da Casa de Segurança do Presidente da República por parte daquele à Recorrente.

7. O Tribunal, ao decretar a perda das duas viaturas aplicou o artigo 6.º, alínea b) da LRCPAB, conjugado com o n.º 2 do artigo 121.º do CPA, em violação do princípio da intransmissibilidade da responsabilidade penal, o que configura uma inconstitucionalidade material, por violação do n.º 1 do artigo 65.º da CRA.

8. Se a Recorrente não é arguida no processo, não foi condenada e nem é terceiro, nos termos do n.º 2 do artigo 121.º do CPA e da alínea b) do artigo 6.ºda LRCPAB, não estão preenchidos os pressupostos legais de terceiro que a lei exige, não podendo ser visada numa decisão judicial de perda de bens.

9. A decisão de aplicar aquelas normas, sem que a figura normativo-criminal de terceiro esteja preenchida, assenta numa interpretação ferida de inconstitucionalidade material por espoliar contra legem a Recorrente do seu direito de propriedade, violando o artigo 14.º da Constituição.

10. A Recorrente pretende que o Tribunal Constitucional aprecie a inconstitucionalidade material da norma prevista do n.º 2 do artigo 121.º do CPA, no sentido de que é lícito ao Tribunal a quo decretar a perda de uma viatura com registo de propriedade anterior à data de entrada em vigor do novo Código Penal, quando, à data dos factos constitutivos do título de propriedade, comprovados com documentos, registo emitido por entidade oficial de Angola, a norma ainda não estava em vigor.

11. Tal facto viola o princípio da irretroactividade da lei penal desfavorável aos visados, consagrado nos n.ºs 2, 3 e 4 do artigo 65.º da CRA.

Compulsadas as alegações, verifica-se que os Recorrentes suscitam a apreciação das mesmas questões de constitucionalidade. Para o efeito, invocam a inconstitucionalidade das normas contidas nos artigos 4.º e 6.º (alínea b) da LRCPAB, bem como do artigo 121.º, n.º 2, do CPA, formulando os seguintes pedidos:
a) Que se aprecie a inconstitucionalidade das normas previstas no n.º 2 do artigo 121.º do CPA e na alínea b) do artigo 6.º da LRCPAB, por terem sido aplicadas no sentido de que integram o património do arguido bens de terceiro sem que se encontrem preenchidos os pressupostos de terceiro de má-fé e da conexão objectiva e subjectiva ao comportamento ilícito daquele, violando-se o princípio da intransmissibilidade da culpa e da pena, consagrado no n.º 1 do artigo 65.º e o direito de propriedade, consagrado no artigo 14.º, ambos da CRA;

b) Que se aprecie a inconstitucionalidade da norma prevista no n.º 2 do artigo 121.º do CPA, aplicada no sentido de que é lícito ao Tribunal a quo decretar a perda de bens com registo anterior à data da entrada em vigor do novo Código Penal Angolano, quando, à data dos factos constitutivos do título de propriedade, comprovados com documentos de registo emitidos por entidade oficial de Angola, a norma ainda não estava em vigor, violando-se o princípio da irretroactividade da lei penal desfavorável aos visados, consagrado nos n.ºs 2, 3 e 4 do artigo 65.º da CRA;

c) Que se aprecie a inconstitucionalidade da norma do artigo 4.º da LRCPAB, por ter sido aplicada aos Recorrentes, na interpretação normativa de que pode o Tribunal decretar a perda de bens de terceiros por meio de uma interpretação extensiva in malam partem, quando não procedeu no Acórdão ao exame crítico da prova que demonstre, com efectividade, a pertença desses bens ao arguido condenado, violando-se o princípio da legalidade, consagrado nos n.ºs 2 e 3 do artigo 65.º da CRA;

d) Que se aprecie a inconstitucionalidade da norma do n.º 2 do artigo 121.º do CPA, no sentido de que é lícito ao tribunal decretar a perda dos bens apreendidos, que integravam o património dos Recorrentes, com mera suposição de que foram obtidos com fundos da Casa de Segurança do Presidente da República, entregues pelo arguido a estes, sem que estivessem preenchidos os pressupostos de terceiro de má-fé, sem a conexão objectiva e subjectiva ao comportamento ilícito daquele, violando-se o princípio da intransmissibilidade da culpa e da pena, e, em consequência, o direito de propriedade.

O Processo foi à vista do Ministério Público que, a fls. 241 a 243 dos autos, pugnou pelo não provimento do recurso.
Colhidos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar para decidir.

II. COMPETÊNCIA

A 2.ª Câmara do Tribunal Constitucional é competente para decidir o presente recurso ordinário de inconstitucionalidade, nos termos conjugados da alínea e) do artigo 16.º da Lei n.º 2/08, de 17 de Junho, Lei Orgânica do Tribunal Constitucional, e do n.º 2 do artigo 32.º do Regulamento Geral do Tribunal Constitucional, aprovado através da Resolução n.º 1/14, de 28 de Julho, pelo Plenário do Tribunal Constitucional.

III. LEGITIMIDADE

Nos termos do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 37.º da LPC, conjugado com a alínea b) do n.º 1 do artigo 463.º do Código de Processo Penal Angolano (CPPA), têm, os Recorrentes, legitimidade para interpor o presente recurso ordinário de inconstitucionalidade, por terem ficado vencidos no âmbito do Processo n.º 6217/23, que correu os seus termos na 1.ª Secção da Câmara Criminal do Tribunal Supremo.

IV. OBJECTO

Emerge como questão decidenda nos presentes autos de recurso ordinário de inconstitucionalidade a apreciação da constitucionalidade das normas contidas no n.º 2 do artigo 121.º do CPA, do artigo 4.º e da alínea b) do artigo 6.º, ambos da LRCPAB por, alegadamente, violarem o direito à propriedade privada, e os princípios da intransmissibilidade da responsabilidade penal e da irretroactividade da lei penal.

V. APRECIANDO

Questão Prévia
Nos termos das alíneas d) e e) do n.º 2 do artigo 181.º da CRA, constitui objecto do recurso ordinário de inconstitucionalidade as normas, cuja aplicação haja sido recusada com fundamento na sua inconstitucionalidade, ou que hajam sido aplicadas após a sua inconstitucionalidade ter sido suscitada no processo.

Neste âmbito de apreciação concreta visa-se avaliar a compatibilidade constitucional de uma norma encarada na sua dimensão operativa, na medida em que está em causa a avaliação dos efeitos reais que a norma gera no contexto das condições em que a sua aplicação se verifica. A questão constitucional reveste aqui os contornos e os limites materiais definidos no processo que deu causa ao recurso e o julgamento de constitucionalidade que sobre ele recair apenas pode ser entendido e eventualmente interpretado no âmbito das premissas objectivas que lhe serviram de suporte.

Por este motivo, o seu controlo incide não apenas sobre as normas stricto sensu, mas também sobre a sua interpretação. A este propósito, vale a pena atentar na clareza com que, no seu Acórdão n.º 373/2015, este Tribunal sedimentou na sua jurisprudência o seguinte: “(…) O objecto do recurso ordinário de inconstitucionalidade é sempre uma norma ou a sua interpretação normativa em desconformidade com a Constituição. É esta particular incidência da apreciação por parte do Tribunal Constitucional que distingue o recurso ordinário do recurso extraordinário de inconstitucionalidade em que é a própria decisão judicial em si mesma a ser fiscalizada para verificar se não contraria algum princípio, direito, liberdade ou garantia previsto na Constituição”.

Com efeito, as normas objecto deste processo devem ser normas vigentes, não bastando a sua publicação no Diário da República, pois que, relacionando-se com a sua efectiva aplicação a um caso concreto, a fiscalização só tem razão de ser se se reportar a normas eficazes e que tenham já produzido os efeitos, ou parte deles, a cuja realização a sua aprovação obedeceu.

No entanto, uma das questões de constitucionalidade que os Recorrentes pretendem ver apreciada por este Tribunal diz respeito à norma do n.º 2 do artigo 121.º do CPA, quando interpretada “no sentido de que é lícito ao tribunal decretar a perda dos bens apreendidos que integram o património dos Recorrentes, com mera suposição de que foram obtidos por fundos entregues pelo arguido [aos Recorrentes], sem que estivessem preenchidos os pressupostos de terceiro de má-fé, sem a conexão objectiva e subjectiva ao comportamento ilícito daquele (…)”.

Verifica-se, portanto, que tal questão não apresenta carácter normativo. Os Recorrentes não pretendem, por esta via, questionar a conformidade daquela norma ou da sua interpretação com a Constituição, mas antes contestar o silogismo judiciário construído pelas instâncias recorridas, relativamente à valoração da prova e aos factos dados como provados.

Este Tribunal, em sede do recurso ordinário de inconstitucionalidade, não tem competência para sindicar a decisão de um tribunal enquanto tal. A sua competência num recurso como o que aqui está em causa cinge-se à apreciação da possível desconformidade de normas de direito infraconstitucional ou da sua interpretação com um parâmetro constitucional (cf. e.g. o Acórdão n.º 373/2015, Onofre dos Santos, Lei do Processo Constitucional Anotada, Texto Editores, 2016, p. 47; Adlezio Agostinho, Manual de Direito Processual Constitucional – Princípios Doutrinários e Procedimentais sobre as Garantias Constitucionais, Parte Geral e Especial, AAFDL, Lisboa, 2023, p. 750).

Assim, por não conter contornos estritamente normativos, o Tribunal Constitucional não pode pronunciar-se sobre tal questão.

Por outro lado, verifica-se também que as normas do artigo 4.º e da alínea b) do artigo 6.º da LRCPAB, apesar de terem sido aqui sindicadas pelos Recorrentes, não foram aplicadas pelo Tribunal recorrido para efeitos da declaração de perda de bens dos Recorrentes.

Atento ao consignado pelo Tribunal da Relação de Luanda e confirmado pelo Tribunal Supremo, a perda dos bens dos Recorrentes foi declarada ao abrigo do disposto no n.º 2 do artigo 121.º do CPA. A este propósito, lê-se no aresto:

“(…) Considerando o disposto na norma supra, é manifesto que os bens dos ora recorrentes não se enquadram no conceito de bens de terceiros com alcance para perda alargada. Pois, em nosso entender, no caso em apreço, ao Ministério Público cabia despoletar o procedimento criminal contra os aqui recorrentes, uma vez que os factos por si (Ministério Público) narrados na promoção de perda de bens, referentes aos Recorrentes, constituem indícios bastantes da prática de crimes de branqueamento de capitais, ilícito pelo qual o arguido Pedro Lussati vem condenado, mas que, por sinal, os aqui Recorrentes são seus compartícipes, sendo, a possível condenação dos mesmos por este ilícito, o pressuposto ou requisito necessário para perda dos referidos bens, tal como estipula o artigo 4.º da lei em alusão[LRCPAB].

Entretanto, não tendo operado este procedimento, os bens em causa devem ser perdidos a favor do Estado nos termos da perda clássica, ao abrigo do artigo 121.º, n.º 2, do CPA (…). É manifesto que no caso dos autos, os aqui recorrentes sabiam da proveniência ilícita dos valores monetários por eles transacionados, inclusivamente faziam-no de forma ilegal e transportando-os para Portugal por vias não convencionais (…)”.

Como se sabe, nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 36.º da LPC, as normas sindicáveis devem ser aquelas que tenham sido, efectivamente, utilizadas pelos demais tribunais para sustentar a sua decisão. O Tribunal Constitucional só pode, em sede de recurso ordinário de inconstitucionalidade, apreciar a norma que a decisão judicial tiver aplicado ou recusado aplicar (Onofre dos Santos, ob. cit., p. 45; Adlezio Agostinho, ob. cit., pp. 750 e 751).

A obrigatoriedade da presente fiscalização incidir sobre as normas efectivamente aplicadas pelo tribunal num determinado litígio fundamenta-se pela singularidade de se estar diante de um controlo concreto em que a inconstitucionalidade da norma resulta do confronto desta com uma situação da vida real, à qual a mesma foi aplicada (Jorge Rodríguez-Zapata, Teoría y Práctica Del Derecho Constitucional, 4.ª Edição, Tecnos, 2018, p. 325).

Assim sendo, face ao expendido, este Tribunal não se vai debruçar sobre as referidas normas por lhes faltar o pressuposto da sua efectiva aplicação no processo, tal como se prescreve na alínea e) do n.º 2 do artigo 181.º da Constituição e na alínea b) do n.º 1 do artigo 36.º da LPC.

De igual modo, asseveram os Recorrentes ser inconstitucional a norma do n.º 2 do artigo 121.º do CPA, se interpretada no sentido de que a perda de bens pode ser decretada contra terceiros de boa-fé (sobre os quais não tenha sido demonstrada a má-fé). No entanto, no caso sub judice, como bem se depreende das razões que presidiram a declaração de perda de bens, esboçadas pelo Tribunal da Relação de Luanda e acima transcritas, verifica-se que tal interpretação não foi efectuada pelo Tribunal recorrido, e, por maioria de razão, não consta da decisão revidenda.

A perda de bens, nos presentes autos, foi decretada, como já se afirmou, tendo como fundamento o disposto no n.º 2 do artigo 121.º do CPA, por se encontrarem os Recorrentes numa das situações aí consagradas, facto que impediu a que os visados beneficiassem das garantias estabelecidas para os terceiros de boa-fé no regime da perda de vantagens, previsto no n.º 2 do artigo 122.º do CPA.

Assim, por não ter sido feita, na decisão recorrida, a referida interpretação da norma que lhe foi assacada pelos Recorrentes, este Tribunal não se vai pronunciar sobre tal questão, dado que não se verifica um dos pressupostos para o seu conhecimento: a aplicação da norma sindicada pelo Tribunal recorrido com a interpretação que os Recorrentes imputam violar a Constituição.

Por conseguinte, o presente recurso ordinário de inconstitucionalidade cingir-se-á à apreciação da norma sindicada do n.º 2 do artigo 121.º do CPA se:

a. interpretada no sentido de que a perda de bens pode incidir sobre bens pertencentes a terceiros, na medida em que viola o direito à propriedade privada e o princípio da intransmissibilidade da responsabilidade penal, previstos nos artigos 14.º e n.º 1 do 65.º da Constituição; e

b. interpretada no sentido de que a perda de bens pode ser decretada retroactivamente e incidir sobre bens adquiridos antes da entrada em vigor do Código Penal Angolano, facto que ofende o princípio da irretroactividade da lei penal, consagrado no n.º 3 do artigo 65.º da CRA.

a) Sobre a Violação do Princípio da Intransmissibilidade da Responsabilidade Penal
No caso vertente, sustentam os Recorrentes que a aplicação nos autos da norma do n.º 2 do artigo 121.º do CPA, quando interpretada no sentido de que pode ser decretada a perda de bens pertencentes a terceiros é inconstitucional, por contender com o princípio da intransmissibilidade da responsabilidade penal consagrado no n.º 1 do artigo 65.º da Constituição.

O preceito sindicado enquadra-se na clássica problemática sobre a perda de bens, relacionados com a prática de um ilícito criminal, previsto no Capítulo IX do Código Penal Angolano, intitulado “Perda de instrumentos, produtos e vantagens”, onde se regula a perda de instrumentos e produtos, no artigo 120.º, bem como a perda de vantagens, no artigo 122.º.

A noção de perda de bens ou confisco, como é também designada, está convencionalmente definida, e traduz-se numa medida de cariz político-criminal que conduz à privação definitiva de bens originados, directa ou indirectamente, da actividade criminosa, decretada por um tribunal, ou outra entidade competente, em consequência de um processo relativo a uma ou várias infracções penais, nos termos do disposto na alínea g) do artigo 2.º e no artigo 31.º da Convenção da Organização das Nações Unidas Contra a Corrupção, concluída em Mérida, em 9 de Dezembro de 2003, vigente na ordem jurídica angolana através da Resolução n.º 20/06, de 23 de Junho, publicada no Diário da República n.º 76, I Série, de 23 de Junho de 2006.

Neste regime legal prevê-se que os objectos que tenham servido ou que se destinassem a servir para a prática de factos ilícito-típicos (instrumenta sceleris), bem como os que forem criados ou produzidos em resultado de tais factos (producta sceleris), sejam declarados perdidos a favor do Estado quando, atenta à sua natureza intrínseca ou às circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem pública, ou oferecerem sério risco de serem utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos (n.º 1 do artigo 120.º do CPA).

Semelhantemente, o Código prevê a perda das vantagens que tiverem sido adquiridas, para si ou para outrem, pelos agentes, através da prática do facto ilícito-típico, ou lhes tiverem sido dadas ou prometidas para esse efeito, e representem um incremento patrimonial de qualquer espécie (artigo 122.º do CPA). Esta medida, assente na ideia de que o crime não compensa, tem a finalidade de repor a situação patrimonial existente antes da prática da infracção penal e visa prevenir e remediar o enriquecimento ilícito.

Atento ao previsto na lei penal angolana, segundo dispõe o n.º 1 do artigo 121.º do CPA, a declaração de perda de bens incide essencialmente sobre os bens (instrumentos, produtos ou vantagens) pertencentes ao agente ou ao beneficiário de um facto ilícito típico. Isto é, em regra, os objectos do crime não podem ser declarados perdidos a favor do Estado quando tenham pertencido a terceiros (que não são agentes nem beneficiários do crime), à data do facto, ou lhes pertençam no momento em que a perda devesse ser decretada.

Entretanto, neste quesito, não se furtou o legislador à previsão da perda dos objectos do crime pertencentes a terceiro. A norma do n.º 2 do artigo 121.º do CPA, aqui sob escrutínio, consagra a seguinte excepção: “Ainda que os objectos pertençam a terceiro, é decretada a perda quando os seus titulares tiverem concorrido, de forma censurável, para a sua utilização ou produção, ou do facto tiverem retirado vantagens; ou, ainda, quando os objectos forem, por qualquer título, adquiridos após a prática do facto, conhecendo os adquirentes a sua proveniência”.

Deste modo, os bens pertencentes a terceiro, que sejam instrumentos, produtos ou vantagens de um facto ilícito-típico, incluindo a recompensa dada ou prometida pela sua prática, deverão ser declarados perdidos a favor do Estado quando: a) o terceiro tiver concorrido, de forma censurável, para a sua utilização ou produção; b) do facto tiver retirado vantagens; e c) o terceiro os tiver adquirido após a prática do facto, conhecendo ou devendo conhecer a sua proveniência.

Sobre tal regime, o direito internacional e o direito africano têm volvido também especial atenção. Desde logo, a Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico Ilícito de Estupefacientes e Substâncias Psicotrópicas, concluída em Viena, em 20 de Dezembro de 1988, aprovada pela Resolução da Assembleia Nacional n.º 19/98, de 30 de Julho (publicada no Diário da República n.º 31, I série) prescreve, no n.º 1 do seu artigo 5.º, que as partes contratantes devem adoptar as medidas que se mostrem necessárias para permitir a perda: a) de produtos provenientes de infracções estabelecidas de acordo com o n.º 1 do artigo 3.º ou de bens cujo valor corresponda ao valor desses produtos; b) de estupefacientes, substâncias psicotrópicas, materiais, equipamentos ou outros instrumentos utilizados ou destinados a serem utilizados, por qualquer forma, na prática das infracções estabelecidas de acordo com o n.º 1 do artigo 3.º, acrescentando no n.º 8 que tal medida pode ser decretada contra terceiros que não se encontrem de boa-fé.

No mesmo diapasão, a Convenção das Nações Unidas contra a Criminalidade Organizada Transnacional, concluída em Nova Iorque, em 15 de Novembro de 2000, aprovada para ratificação pela Resolução da Assembleia Nacional n.º 21/10, de 22 de Junho (publicada no Diário da República n.º 115, I série) estabelece, no n.º 1 do seu artigo 12.º, sob epígrafe “perda e apreensão”, o seguinte: “Os Estados Partes deverão adoptar, na medida em que o seu ordenamento jurídico interno o permita, as medidas necessárias para permitir a perda:

a) Do produto das infracções previstas na presente Convenção ou de bens cujo valor corresponda ao desse produto; b) Dos bens, equipamentos e outros instrumentos utilizados ou destinados a ser utilizados na prática das infracções previstas na presente Convenção”. Não devendo, em circunstância alguma, nos termos do seu n.º 8, “as disposições do presente artigo ser interpretadas de modo a afectar direitos de terceiro de boa-fé”.

No que diz respeito ao contexto africano, merece destaque o Protocolo da Comunidade para o Desenvolvimento da África Austral (SADC) contra a Corrupção, celebrado em Blantyre, aos 14 de Agosto de 2001, aprovada pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 38/05, de 8 de Agosto, publicada no Diário da República n.º 94, I série.

Os Estados signatários, reconhecendo “que a corrupção constitui um grave problema internacional que deve ser combatido pelos países em cada etapa de desenvolvimento, como questão de urgência” e “reconhecendo que a corrupção compromete a boa governação”, entre outras medidas constantes do Protocolo, estabeleceram, no n.º 1 do artigo 8.º, sob epígrafe “Apreensão e Confisco”, que “Cada Estado Parte adoptará medidas, sempre que necessário, para permitir: a) O confisco dos rendimentos provenientes da prática das infracções estabelecidas de acordo com o presente Protocolo, ou da propriedade cujo valor corresponde aos dos rendimentos em questão; b) Às suas autoridades competentes identificar, localizar, congelar ou apreender os rendimentos, propriedade ou instrumentos com vista a um eventual confisco”.

Ainda neste mesmo sentido, a Convenção da União Africana sobre a Prevenção e o Combate à Corrupção, validada pela Carta de Ratificação do Presidente da República n.º 1/18, de 26 de Março (publicada no Diário da República n.º 41, I série) dispõe no n.º 1 do seu artigo 16.º que “Cada Estado Parte deve adoptar as medidas legislativas julgadas necessárias para permitir: a) a busca, a identificação, a localização, a gestão e a penhora, pelas suas autoridades competentes, dos meios e produtos da corrupção, enquanto se aguarda pelo julgamento definitivo; b) o confisco dos proventos ou bens, cujo valor corresponde a esses proventos, derivados das infracções definidas na presente Convenção”.

Ora, a análise da questão de inconstitucionalidade suscitada pelos Recorrentes, impõe a que se debruce, previamente, a respeito da natureza jurídica do instituto da perda de bens em processo penal, de modo a aferir se a sua aplicação é susceptível de conflituar com as garantias constitucionais previstas em matéria penal, designadamente, o princípio da intransmissibilidade da responsabilidade penal.

Como é manifesto, no universo jurídico, a natureza de qualquer medida depende, essencialmente, dos pressupostos em que assenta. Sobre a natureza ontológica do instituto da perda de bens, afigura-se preponderante a posição segundo a qual o instituto em análise não tem natureza penal ou, sequer, sancionatória.

Nos termos do entendimento dominante, a perda de bens tem um carácter extrapenal. O instituto não possui qualquer ligação com a culpa do agente pelo facto ilícito-típico perpetrado, podendo o instituto intervir mesmo relativamente a inimputáveis, por um lado, e podendo ele intervir, por outro lado, mesmo que nenhuma pessoa determinada possa ser condenada (cf. Cezar Roberto Bittencourt, Tratado de direito penal: parte geral, I. I6.ª Ed., Saraiva, São Paulo, 2011, pp. 769-777; Claúdio Macedo de Souza e Luiz Dias Cardoso, A perda alargada em face da principiologia processual penal brasileira, 2.ª Versão, Revista IBCCrim. p. 168; Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português – As consequências jurídicas do crime, Coimbra, 2011, pp. 627 e ss.; Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, à luz da Constituição da República e da Convenção dos Direitos do Homem, 3.ª edição, atualizada, Universidade Católica Editora, 2015, pp. 451-464; M. Simas Santos e M. Leal Henriques, Noções elementares de Direito Penal, 3.ª ed. rev. e act., 2009, pp. 321-325).

Segundo afirma Eduarda Rodrigues, a perda de bens, quer se trate da perda clássica ou da perda alargada, tem uma natureza civil reparadora, na medida em que pretende restaurar a situação patrimonial existente no momento anterior à prática do facto ilícito-típico, impedindo, por força disto, o lucro ilícito (O Regime Jurídico de Recuperação de Activos em Angola – Aspectos Práticos, 2024, p. 89).

No sugestivo título de João Conde Correia, “«Non-Conviction Based Confiscations» No Direito Penal Português Vigente: ‘Quem tem medo do Lobo Mau?’”, o Autor assevera tratar-se, o instituto, de uma mera restauração de uma ordem patrimonial conforme ao Direito. “O confisco não é uma pena. Em causa está, apenas, corrigir uma situação patrimonial ilícita que não goza de tutela jurídica. O mecanismo dirige-se contra os próprios bens, sem um qualquer juízo de censura da ação ou omissão individual que lhes está subjacente” (Revista Julgar, n.º 32, 2017, p. 94).

De igual jaez, Figueiredo Dias, Paulo Pinto de Albuquerque, M. Simas Santos e M. Leal Henriques asseveram ser a perda dos instrumentos e produtos do crime uma providência análoga à medida de segurança, visto que, não sendo rigorosamente uma medida de segurança, por lhe faltar o carácter sancionatório orientado para a perigosidade do agente do facto ilícito-típico praticado, no instituto da perda a perigosidade e a sua prevenção se referem apenas aos objectos relacionados com o crime, enquanto seus instrumentos ou produtos (Jorge de Figueiredo Dias, Ob. cit., p. 627; Paulo Pinto de Albuquerque, Ob. cit., p. 451; M. Simas Santos e M. Leal Henriques, Ob. cit., p. 321).

Por sua vez, Pedro Caeiro qualifica a perda de bens como um tertium genus dentro da panóplia das reacções penais. Afirma o Autor: “(…) Todas visam finalidades de prevenção criminal e todas arrancam de um tronco comum – um concreto facto ilícito-típico, requerendo, depois, circunstâncias particulares (que aliás são mutuamente exclusivas): a pena exige a culpa; a medida de segurança exige a perigosidade do agente; a perda basta-se, muito prosaicamente, com a existência de instrumentos e produtos do crime, e vantagens patrimoniais obtidas através da prática do crime” (Pedro Caeiro, Sentido e função do instituto da perda de vantagens relacionadas com o crime no confronto com outros meios de prevenção da criminalidade reditícia (em especial os procedimentos de confisco in rem e a criminalização do enriquecimento “ilícito”), in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 21, n.º 2, Abril-Junho 2011, p. 267.

Por outro ângulo, Hélio Rigor Rodrigues distingue, de um lado, a natureza jurídica dos instrumentos ou produtos do crime, e de outro, a das vantagens do crime. Na perspectiva deste autor, algumas modalidades de confisco (perda), como o confisco dos instrumentos e produtos do crime, poderão ser classificados como medida análoga à medida de segurança, pois na sua génese encontra-se, ainda que longínqua, uma intenção de prevenção do perigo. Todavia, no que respeita ao confisco das vantagens, este deverá, outrossim, ser classificado como uma quarta via ou quarto degrau nas reacções que o Estado pode assumir contra os crimes, a par das penas, das medidas de segurança e da reparação da vítima, uma vez que não tem fundamentos em critérios de perigosidade (O Confisco das Vantagens do Crime: Entre os Direitos dos Homens e os Deveres dos Estados à Jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem em Matéria de Confisco, in Maria Raquel Desterro Ferreira, Elina Lopes Cardoso e João Conde Correia, O Novo Regime de Recuperação de Ativos À Luz da Directiva 2014/42/EU e da Lei Que a Transpôs, 1.ª Ed. Imprensa Nacional, 2018, versão e-book/Kindle).

No âmbito da vigência do Código Penal de 1886, o legislador ordinário caracterizava, no seu artigo 75.º, a perda dos instrumentos e produtos do crime como um efeito não penal da condenação. Tal medida era, no entanto, apenas aplicada ao agente do crime efectivamente condenado numa pena, e, por conseguinte, imputável e tivesse actuado com culpa, ficando de fora da incidência da norma muitas situações em que de uma perspectiva político-criminalmente aceitável e relevante, a perda devesse ser decretada com tanta ou maior razão, como o é o caso de terceiros.

Actualmente, o novo Código Penal trouxe alguma clareza à perda de bens, instituindo-a como um verdadeiro Non-conviction based confiscation-NBC (confisco não baseado numa condenação), na acepção constante das Recomendações do Grupo de Acção Financeira Internacional - GAFI-, sobre as normas internacionais de combate ao branqueamento de capitais e ao financiamento do terrorismo (2012-2023), que o define como confisco de bens de origem criminosa, mediante processo judicial, no qual a efectiva condenação do agente não é requerida (acessível em: www.faft-gafi.org).

Atento à norma do n.º 2 do artigo 120.º do CPA, verifica-se que o legislador ordinário alterou o paradigma, prescindindo da efectiva condenação do visado para que seja declarada a perda dos instrumentos, produtos e vantagens, substituindo, consequentemente, o inciso “crimes” por “facto ilícito-típico”.

Da leitura atenta dos traços característicos e pressupostos do nosso sistema jurídico de perda de bens, revela-se clara a sua descaracterização como uma sanção penal. Em primeiro lugar, o próprio Código Penal prescinde da culpa do visado para efeitos da perda. O regime da perda de bens não se encontra sujeito ao princípio nulla poena sine culpa, previsto no n.º 1 do artigo 42.º do CPA, podendo os bens, observadas certas condições, ser declarados perdidos mesmo quando a sentença entenda não ter existido culpa do agente do crime.

O regime furta-se também ao princípio da legalidade penal. A perda de bens não se encontra no catálogo de penas ou medidas de segurança previstas no Código Penal (artigo 39.º), não se submete ao regime de determinação das penas, e não responde aos seus fins, dado que não tem como finalidade a ressocialização do agente ou a protecção de qualquer bem jurídico individualizado, não intervindo, neste contexto, qualquer ponderação quanto à proporcionalidade entre o crime e a perda.

Assim, para efeitos da sua aplicação, são apenas considerados os instrumentos efectivamente utilizados para a prática do facto ilícito e os ganhos obtidos pelos agentes, beneficiários ou terceiros, devendo o Juiz fixar o montante em razão do enriquecimento e não do grau da culpa.

Deste modo, a perda de bens “poderá operar independentemente da demonstração da mens rea, ou seja, da verificação de uma conduta dolosa do agente do crime e tendente à obtenção das vantagens. Ao contrário da responsabilidade criminal, que apenas poderá operar, em princípio, nos casos em que o agente tenha consciência dos seus atos e das consequências deste, o confisco poderá ser aplicado com total independência da postura axiológica do agente que praticou o facto de onde resultaram os benefícios económicos. É este, precisamente, o resultado da Lei nacional, que nos artigos 109.º e 110.º do Código Penal exige como pressuposto de aplicação do confisco a ocorrência de um facto ilícito típico, ou seja, independentemente da sua natureza culposa. Esta será mais uma das derivações do postulado «in rem contra mens rea» que em grande medida determina toda a arquitetura jurídica do confisco” (Hélio Rigor Rodrigues, ob. cit.).

Isto assente, resulta patente que o estabelecimento do instituto da perda dos instrumentos, produtos e vantagens do crime, cuja inconstitucionalidade é sindicada nos presentes autos, é um mecanismo compensatório ou ressarcitório. Este não tem em vista imputar ao agente do facto ilícito-típico ou ao terceiro a prática de qualquer crime e o seu consequente sancionamento, mas sim privá-los de um património, por se ter concluído que os mesmos se destinavam a uma actividade ilícita, ou revelam-se o resultado de uma determinada infracção criminal, restaurando-se, assim, a ordem patrimonial dos visados segundo o direito, facto que situa a questão em plano diverso da que foi suscitada pelos Recorrentes.

A declaração de perda não reflecte o carácter pessoalíssimo da pena, segundo a qual esta pode aplicar-se apenas ao autor do facto ilícito-típico. Daí que se possa configurar a sua aplicação sem prévia condenação, ainda que os bens pertençam a um terceiro. “El comiso no tiene los mismos fines que la pena criminal, sino que persigue remediar un estado patrimonial ilícito surgido como consecuencia de la comisión de un delito. Fin del comiso es corrigir la perturbación del ordenamento jurídico consecuencia de la situación patrimonial ilícita generada por la comisión de delitos. No pretende desaprobar ni castigar un comportamento antijurídico, sino impedir que persista em el futuro una perturbación del ordenamento jurídico producida en el passado” (Isidor Blanco Cordero, Recuperación de Activos de la Corrupcíon mediante el Decomiso sin Condena (comiso civil o extincíon de dominio, In AA. VV., El Derecho Penal y la Política Criminal Frente a la Corrupcíon, Ubijus, Mexico, 2012, pp. 340 e 341).

Neste diapasão, a óbvia e inevitável consequência de o instituto da perda de bens não constituir uma reacção contra a prática de um crime, nem uma reacção sancionatória tout court, é a de não se lhe aplicarem as garantias constitucionais de estrita incidência em âmbitos normativos sancionatórios, como o são o princípio da intransmissibilidade da responsabilidade penal e as suas várias manifestações.

Assim, face ao expendido, conclui-se que o instituto da perda de bens de terceiros previsto no n.º 2 do artigo 121.º do CPA não viola o princípio da intransmissibilidade da responsabilidade penal, previsto no n.º 1 do artigo 65.º da Constituição, na medida em que o regime prescinde da efectiva responsabilidade criminal do visado.

b) Sobre a Alegada Violação do Direito à Propriedade Privada
Ainda em sede de alegações, os Recorrentes sustentam que a norma do n.º 2 do artigo 121.º do CPA é inconstitucional, por violação do direito à propriedade privada, quando interpretada no sentido de que podem ser declarados perdidos a favor do Estado bens pertencentes a terceiros. Isto é, trata-se aqui, no fundo, de apurar se a referida norma é conforme ao parâmetro constitucional das disposições conjugadas dos artigos 14.º, 37.º e 57.º da Constituição.

A circunstância de a perda de bens não assumir natureza penal, não lhe sendo, consequentemente, aplicáveis as garantias em matéria penal constitucionalmente previstas, como atrás se referiu, não implica a que esta se furte à salvaguarda de garantias mínimas. No procedimento de perda de bens deverão ser observadas e aplicadas as demais garantias elementares, relativamente à defesa e respeito pelos direitos fundamentais dos visados.

O artigo 37.º da Constituição, sob epígrafe “Direito e limites da propriedade privada”, estabelece, no seu n.º 1, que “a todos é garantido o direito à propriedade privada e à sua transmissão, nos termos da Constituição e da lei”, tendo o Estado a obrigação não apenas de respeitar, mas também de proteger a propriedade privada das pessoas singulares ou colectivas, nos termos do artigo 14.º da CRA.

Esta estatuição corresponde à norma do artigo 17.º da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), bem como ao preceito do artigo 14.º da Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos (CADHP), onde se prescreve que: “O direito de propriedade é garantido, só podendo ser afectado por necessidade pública ou no interesse geral da colectividade, em conformidade com as disposições das leis apropriadas”.
Embora se reconheça a sua crucial importância, o direito à propriedade privada não está consagrado em termos absolutos, quer na Constituição, quer na DUDH ou mesmo na CADHP e, como tal, está sujeito a interferências, limitações e restrições.

Como tem sublinhado a Comissão Africana dos Direitos Humanos e dos Povos (ComADHP), a limitação do direito à propriedade privada dependerá da sua conformidade com a lei aplicável (in accordance with the provisions of appropriate laws), da prossecução de um interesse público (in the interest of public need or in general interest of the community) e da observância dos princípios da necessidade e da proporcionalidade (fair balance) (cf., ComADHP, Huri-Laws c. Nigéria, Comunicação n.º 225/98, §53 e Front for the liberation of the State of Cabinda c. Angola, Comunicação n.º 328/06, §§105, 106, 108-110).

Deste modo, o direito de propriedade poderá sofrer afectações desde que se verifique que a restrição persegue um objectivo legítimo, traduzido no interesse público, e que a intervenção do Estado é proporcional a esse interesse público perseguido, convocando-se, assim, um correcto balanceamento entre o interesse geral da comunidade e o interesse do privado afectado.

Não obstante a definição do interesse público revelar-se, na esmagadora maioria dos casos, de difícil concretização, dúvidas não restam de que no domínio sob análise, no contexto da perda de bens, a limitação do direito de propriedade encontra-se razoavelmente justificada. De modo geral, os valores jazentes ao combate e prevenção do crime preenchem, indubitavelmente, o interesse público previsto na norma do artigo 37.º da CRA e do artigo 14.º da CADHP.

A privação da propriedade, sob a égide da norma em escrutínio, não pode deixar de se considerar adequada ao desempenho da sua função garantística e proporcional à obtenção do seu escopo de restabelecimento da ordem patrimonial dos bens face ao direito vigente, na medida em que os valores de segurança das pessoas, da moral e da ordem pública, bem como a correcção da perturbação produzida no ordenamento jurídico pelo incremento patrimonial resultante da prática do crime, se sobrepõem ao direito de propriedade, cuja proveniência seja ilícita.

Outrossim, um modo adicional de equacionar-se a questão aqui colocada pelos Recorrentes, passa por considerar que os bens confiscados, em sede do instituto em análise, não podem considerar-se como propriedade dos sujeitos visados. O crime não é título aquisitivo da propriedade, pelo que, em bom rigor, não poderá ser reconhecido ao agente do crime ou a terceiros quaisquer direitos de propriedade sobre os bens que obtiveram com a actividade criminosa.

No caso sub judice, atento à factualidade dada como provada nos autos, verifica-se que os bens dos Recorrentes declarados perdidos a favor do Estado resultaram de uma actividade ilícita, no âmbito da qual, Jomilton Gaspar e Denise dos Santos prestaram o seu contributo de modo censurável.

Dos autos, vislumbra-se, a fls. 17152, que ficou demonstrado que os Recorrentes contribuíram para a materialização do crime imputado ao arguido Pedro Lussati, por terem transportado avultadas quantias monetárias para o exterior do País, recebendo, pelo serviço prestado, generosas quantias monetárias como recompensa, conhecendo a proveniência ilícita destas.

Nestes termos, este Tribunal é de entendimento que a aplicação da norma do n.º 2 do artigo 121.º do CPA, quando interpretada no sentido de que se pode declarar perdidos a favor do Estado bens de terceiros que se encontrem numa das situações previstas na norma mencionada (terceiros que não estejam de boa-fé), não é inconstitucional, por se encontrar tal medida razoavelmente justificada em razão da perigosidade dos bens visados e da função creditícia do Estado de restabelecer a ordem patrimonial, por ter produzido o facto, que deu origem a essas vantagens, uma importante lesão nos interesses da comunidade (n.º 2 do artigo 57.º da CRA).

c) Sobre a Alegada Violação do Princípio da Irretroactividade da Lei Penal
A segunda questão suscitada pelos Recorrentes prende-se com a inconstitucionalidade da norma do n.º 2 do artigo 121.º do CPA, se interpretada no sentido de que a perda de bens pode ser decretada retroactivamente e incidir sobre bens adquiridos antes da entrada em vigor do Código Penal Angolano, facto que, na sua perspectiva, infringe o princípio da irretroactividade da lei penal, previsto nos n.ºs 2 e 3 do artigo 65.º da Constituição.

No entanto, em razão do acima expendido a propósito da natureza jurídica do instituto da perda de bens, decai, de um só passo, a hipótese do aludido preceito postergar o princípio da irretroactividade da lei penal.

Como se sabe, o princípio em pauta é um corolário do princípio da legalidade penal, e traduz a ideia segundo a qual, a previsão legal dos conteúdos com relevância criminal e das respectivas censuras apenas se deve volver para situações futuras. Assim, a função das normas penais, de exercer uma acção psicológica geral impeditiva do crime, impõe, como pressuposto da punição, a anterioridade da sua incriminação e da correspondente cominação legal em texto de lei escrito e publicado.

Nestes termos, como tal, o princípio projecta-se às sanções de natureza penal, propriamente ditas, proclamando a sua aplicação quando alguém pratique determinado facto, por não ter consciência das consequências sancionatórias a ele atreladas, em razão da ausência de previsão, à data do facto.

Embora a finalidade preventiva do instituto da perda de bens seja comum à que, em geral, subjaz ao direito penal, os seus efeitos não o são. Conforme se procurou demonstrar no presente aresto, a medida da perda de bens, judicialmente decretada, não visa imputar ao agente do facto ilícito-típico ou ao terceiro a prática de qualquer crime e o seu consequente sancionamento, mas sim privá-los de bens, por um lado, que representem um perigo à segurança das pessoas, à moral e à ordem pública, no caso dos instrumentos e produtos do crime, e, por outro, no caso das vantagens, recuperar um património, por se ter concluído que foi adquirido ilicitamente.

A aplicação do novo Código Penal para o decretamento da perda dos bens dos Recorrentes adquiridos antes da entrada em vigor do mencionado Código, justifica-se em razão da própria ratio do instituto, que se traduz numa medida de não tolerância da ordem jurídica com uma situação patrimonial ontologicamente ilícita.

No que diz respeito aos instrumentos e produtos do crime, a justificação do seu confisco nessas circunstâncias reside na sua perigosidade intrínseca e latente. O Estado de Direito não pode ser leniente e compassivo com a existência de objectos que pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, colocam em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem pública ou oferecem sério risco de serem utilizados para o cometimento de novos factos ilícito-típicos.

Por sua vez, no caso das vantagens do crime, o seu fundamento reside, essencialmente, na reposição do status quo ante a prática do facto ilícito-típico (suum cuique tribuere), e nessa medida fazer regressar à sociedade os bens que lhe pertencem, por via do dano que o crime lhe infligiu.

Com efeito, para o seu decretamento tem-se em atenção o estado actual dos objectos em causa, sujeitos à perda. Isto é, basta que no momento da ponderação da perda de bens, o tribunal verifique, na esfera jurídica dos visados, a manutenção de bens que tenham sido utilizados ou que se destinassem à prática de um determinado ilícito criminal, ou ainda que sejam o produto ou a vantagem de uma conduta jurídico-penalmente censurável, sendo, sobretudo, irrelevante a data da sua aquisição.

Assim sendo, por tudo quanto foi expendido no presente aresto, não subsiste o juízo de inconstitucionalidade apregoado sobre a norma do n.º 2 do artigo 121.º do CPA, quando interpretada no sentido de que a perda de bens a favor do Estado pode ser declarada contra bens de terceiros, nas situações descritas na aludida norma, ainda que tenham sido adquiridos antes da entrada em vigor da norma sob escrutínio.

Nestes termos,

DECIDINDO

Tudo visto e ponderado, acordam, em Sessão, os Juízes Conselheiros da 2.ª Câmara do Tribunal Constitucional, em:

a) NÃO JULGAR INCONSTITUCIONAL A NORMA DO N.º 2 DO ARTIGO 121.º DO CÓDIGO PENAL ANGOLANO, QUANDO INTERPRETADA NO SENTIDO DE QUE PODEM SER DECLARADOS PERDIDOS A FAVOR DO ESTADO BENS DE TERCEIROS, AINDA QUE ADQUIRIDOS ANTES DA ENTRADA EM VIGOR DO CÓDIGO PENAL ANGOLANO, E, EM CONSEQUÊNCIA,

b) NEGAR PROVIMENTO AO RECURSO.

Custas pelos Recorrentes, nos termos do artigo 15.º da Lei n.º 3/08, de 17 de Junho – Lei do Processo Constitucional.

Notifique-se.

Tribunal Constitucional, em Luanda, aos 20 de Junho de 2024.

OS JUÍZES CONSELHEIROS DA 2.ª CÂMARA

Dra. Júlia de Fátima Leite S. Ferreira (Presidente)

Dr. Carlos Manuel dos Santos Teixeira (Relator)

Dr. Gilberto de Faria Magalhães

Dra. Josefa Antónia dos Santos Neto

Dr. Vitorino Domingos Hossi